Aplanar as curvas.


Paula Rego, The Nightmare, 1957

 

Tem sido a imagem de marca da crise pandémica que vivemos. É uma imagem feliz, por ser simples e de fácil entendimento, e que também tem sido bem comunicada como objetivo coletivo, motivador de comportamentos de restrição de contactos e promoção do isolamento social inteligente.

Diluindo o número de novos casos em cada momento e, portanto, o número de internamentos e restantes fatores de stress sobre os sistemas de saúde, conseguiremos tornar suportável o embate da crise e responder da melhor forma possível aos casos mais exigentes.

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Todavia, removendo as variáveis, podemos concluir uma verdade mais ampla: o que este gráfico traduz é a fórmula para a sustentabilidade. 


O usufruto do tempo na sua lonjura plana é que converte o imediato frenético no consumo sustentável da nossa energia. 

E abrandar dá muito trabalho, exige muito treino. É preciso muito esforço para se fazer pouco esforço. Disso são exemplo as medidas de saúde pública, as análises permanentes, a comunicação hiperativa. Porque só após uma análise extenuante - da situação epidemiológica ou da nossa personalidade, hábitos e atitudes -, é que poderemos otimizar processos. 

É sintomático do nosso modo de viver coletivo que a pressa consuma em labaredas violentas a ambição de um prato cozinhado a lume brando. 

A chapa metálica que a minha avó aquece logo desde as primeiras horas da manhã nas saias da lareira é que permite à sopa um borbulhar apurado. 

Das brasas em fogo arrastadas para debaixo da grelha como um gato debaixo da mesa é que nascerá o cheiro manso da alheira quase quase a ponto de rebentar, volumosa e generosa. 

O que a curva nos diz, resumindo, é que podemos reformar um sistema complexo pela via do aumento da capacidade de resposta ou pela via da manipulação do tempo. Idealmente, ambas. "Ganhar tempo", diz-se. 

A minha avó tem 84 anos, quatro netos e todo o tempo do mundo. Quando ao final do dia o meu telefone nos põe em contacto, a ela numa aldeia perdida do interior, a mim no frenesim de uma autoestrada cruzada constantemente por gente, o que fazemos é o aplanar das curvas na distância, num esforço coletivo, discreto e manso, até que o Marão não seja mais do que uma memória líquida, desfeita de neve e terra.

É possível falar, ao mesmo tempo, de epidemiologia e de poesia. 

Pedro Eduardo Ramos






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