Adiado.


Como se num martírio arrastasse, indecente pelas ruas do sono, numa algazarra de cães e moscas, o cadáver adiado da minha própria chegada, conduzi os pés na lama das poças. Há muita vida num morto. E o projeto adiado sempre é, de entre todos, o mais brilhante. Trá-lo como um fardo amanhado à espinha, um enorme saco de ausências, um Natal sem pais. O projeto não chegou, nem eu a ele, ou a mim mesmo. Vamos juntos para um outro lugar de oportunidade. Vergado sob o peso dos meus compromissos ulteriores (os que não se efetivaram por mera questão logística), arrasto o saco das indignidades que vão vertendo gotas pontuais de sangue, doces no passeio. A velha é uma bruxa muito má, e nenhuma criança supõe a ira da fome. Havemos de lá chegar. É retorcido e denso o caminho das flores. Nem o poema é circular. Arrepiadamente fazemos caminho mato adentro, cada trilho é novo. Logo após o desbravar de espinhos a natureza refaz o seu pedaço original, e orgulha-se do feito como quem dispõe da vida um jogo alegre. Tenho vindo a reagir alergicamente à textura das folhas. É para isto que precisamos do advérbio. Porque desejamos que os outros saibam. Mas encerra-se o caminho, e cada vida é selada num invólucro específico, marca contexto, inacessível. Oiço o teu suspiro num outro lugar qualquer da floresta. As minhas mãos já não afastam os fetos. Um transe em que nos possamos encontrar, procuramos, mas logo o peso nos consome distrações, e espinhos novos se prendem à mesma pele desfeita. Sísifo teve o privilégio de um propósito. Nas copas de árvores há cadáveres estrangeiros. Um cemitério arejado, florido. Temos morrido mal. Não encontraremos nenhuma casa feita de guloseimas. Somos gente crescido, por deus. Podia ser pior. Isto é o que há. 

Pedro Eduardo Ramos


Egon Schiele, Death and the Maiden, 1915


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