Este é o meu corpo.


Pegando na ideia, foi fácil esboroá-la, enfarinhada, em pedaços miúdos, para distribuir pelo pessoal. O mesmo havia feito, alguns dias antes, com o amor. O meu avô-amor fazia questão de iniciar o almoço de domingo abraçado ao pão quente: como segurando um filho pequeno, à cabeça da mesa orquestrava a faca aguçada e, em gestos amplos, rasgava o pão-amor, dispondo fatias junto ao prato de todos. No gesto teatral, exagerado porque insuflado de amor, residia a alegria de alimentar. Uma vida quase inteira dobrada diante as adversidades de uma vinha dobrada sobre o Douro. O meu avô não falava, comprometido com a meticulosa tarefa. Mas todo o seu corpo dizia, severo: este é o meu corpo. Depois da refeição, morria-se um pouco no amolecer do escano, a ver passar futuros. A pinga sagrada (sangue quente) corava-lhe as bochechas gordas, e era castiço no seu cambalear em passos curtos, baixo e cheio, piparotando as nossas cabeças de putos, como quem diz: garotada, e rindo amorosamente. No campo alinhava, pedra sobre pedra, muros e divisórias, e divertia-se a construir pequenos habitáculos, do tamanho de meia pessoa e meia (do nosso tamanho), que deixava perdidos no meio de nenhures à espera de serem sombra para a merenda no pino do sol. Há vidas que são rio sem esperança de foz. Estreitamente, entre margens, num sufoco. Esquecido da nascente. Um rio só, soluçando pedras. 

Pedro Eduardo Ramos





Paula Rego, Quando Tínhamos uma Casa no Campo, 1961



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